domingo, 21 de fevereiro de 2010

E a justiça oficial acha bem o que sabemos todos que está mal



Nos últimos tempos temos assistido a uma frenética competição, nas modalidades “Eu defendo mais a justiça do que tu”, “Eu gosto muito mais da liberdade de expressão do que tu!”. O fenómeno de popularidade deste “desporto” tem atraído ranchos de recém-chegados à ideia de “justiça” e da “liberdade de expressão”, ideias a que nunca tinham dado uma grande importância.

Curiosamente, talvez sob o efeito do típico entusiasmo dos principiantes, estes recém-chegados, muitos vindos mesmo da direita trauliteira, são os mais ruidosos na defesa apaixonada da justiça e liberdade... enquanto aqueles que toda a vida as defenderam, que todos os dias vêem a verdadeira justiça adiada e a sua liberdade de expressão cerceada e silenciada pelos famosos “critérios jornalísticos” dos meios de comunicação social do sistema, apreciam o espectáculo algo exótico desta súbita paixão colectiva.

Por isso e também depois de ler um comentário aqui deixado pelo “real” leitor “Pata Negra”, que a propósito do meu post “Não tive nada que ver... nem voltarei a ter!” nos diz: «De que me vale a liberdade de expressão se eu não souber, ou possuir meios para a exprimir!», lembrei-me de uma grande canção do Grupo Outubro (acho que já vos disse que o Outubro foi o melhor grupo de música popular portuguesa de intervenção, na minha opinião algo suspeita), do álbum “Cantigas de ao pé da porta”, editado em 1977.

O Pedro Osório pegou neste poema do Brecht, adaptou-o para uma bela letra cantável, criou uma melodia que lhe assentou como uma luva, vestiu tudo com um belíssimo arranjo “orquestral”... e saiu este “Diz-me companheiro”, uma cantiga para ouvir e pensar, uma das que fazem muita falta.

Bom domingo!

Diz-me companheiro
Letra: B. Brecht / Pedro Osório
Música: Pedro Osório

Diz-me companheiro
Pra que serve a bondade
Se os bondosos forem sempre perseguidos
Forem presos, torturados, abatidos
E se a vida for roubada
Aos humildes a quem a bondade é destinada

Não basta ser bondoso
É preciso construir o homem novo
O mundo novo
Onde já não seja necessária a caridade
E ninguém defenda o valor da humildade

Diz-me companheiro
Pra que serve a liberdade
Quando os homens que são livres estão cercados
Por irmãos que continuam explorados
Quando os homens têm medo
De perder a liberdade pela manhã cedo

Não basta ser livre
É preciso construir o homem novo
O mundo novo
Onde a liberdade já não seja discutida
E por ser de todos nunca mais seja perdida

Diz-me companheiro
Pra que serve a justiça
Quando só quem não é justo pode ter
O que todos necessitam pra viver
E a justiça oficial
Acha bem o que sabemos todos que está mal

Não basta ser justo
É preciso construir o homem novo
O mundo novo
Onde quem for justo nunca seja condenado
E quem for injusto venha sempre a ser culpado.

(“Clicar” no meio da cassete para ouvir)

“Diz-me companheiro” – Grupo Outubro
(Bertolt Brecht e P. Osório / Pedro Osório)

12 comentários:

Helena Neves disse...

em cheio!
excelente!

BJ

Maria disse...

É preciso construir o Homem Novo!!!
Excelente!
E já sei que músicas vou ouvir de seguida...

Abreijos

Daniel disse...

Samuel, eu escrevi há tempos a seguinte frase: "É preciso que haja pecadores para que outros sejam santos." Por palavras mais terra-a-terra diria: "É preciso quem faça o trabalho sujo para que nós andemos limpos." Qualquer uma delas serviria, creio eu, como comentário ao poema de Brecht.

Elísio Alfredo disse...

Bom dia Samuel, desde Castelo Branco

Já tenho perguntado por onde andarão os nossos cantores de intervenção, nestes tempos em que tanto precisamos deles?

Será que vais colocar esta bela canção Nas Músicas para que a possa ir buscar?

Um abraço
Elísio Carmona
Castelo Branco

Fernando Samuel disse...

Que grande Grupo Outubro!

(fiz-me velho a lutar pela construção do homem novo» e do mundo novo - e essa será a minha luta até... ao fim da velhice)

Um abraço.

Graciete Rietsch disse...

Obrigada camarada pelo maravilhoso poema e excelentíssimo arranjo musical.
Um beijo.

Anónimo disse...

Caro Cantiguerio,

Então, aqui vai uma opinião insuspeita: o Grupo "Outubro" protagonizou o que de melhor se fez na música de intervenção em Portugal.

Só um Grande grupo conseguia (eu estava lá, eu vivi-o), pouco tempo depois do 25 de Novembro, levar um Pavilhão dos Desportos (hoje Pavilhão Carlos Lopes)apinhado de gente, às lágrimas, com uma canção cujo título não recordo (seria a luta vai ser dura companheiro?), mas que no refrão dizia "por cada voz calada, mil vozes vão romper, gritando a força deste povo, que não se vai render".
E de repente, um pavilhão inteiro, de lágrima ao canto do olho, soltou-se num grito de determinação e força, tão longo e tão intenso que, 35 anos depois, ainda o consigo descrever ao pormenor.

Um abraço ao Samuel e à Maria do Amparo, poruqe a história, também é isto.

P. A.

São disse...

Mas , segundo me parece, a preocupação é se tudo está formalmente correcto.

Além disso, grave não é nada disto que está minando o regime, não! Grave é o roubo de três galinhas e, agora, de um saco de amêndoas : no primeiro caso , o ladrão foi apresentado algemado e o segundo está a ser julgado por três juízes

E está tudo dito!

Bom domingo para vós.

duarte disse...

é preciso desenhar novos horizontes,
para que,olhos novos, sintam na viagem a descoberta da partilha...
abraço do vale
ah!... e gostei da música, da letra , e sim , está muito bom.

Mar Arável disse...

O Homem quanto mais culto mais livre

ou quanto mais livre mais culto?

Abraço

Rogério Manuel Madeira Raimundo disse...

gracias...acabei por partilhar no meu blogue e na minha página do facebook...
aquel'abRRaço

samuel disse...

Per tutti:
Gosto muito de que tenham gostado!

Grande abraço.