quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O homem que gostava de canções


“Festa de aldeia” – Álvaro Cunhal, in “Desenhos da prisão”

Quando no dia 13 de Abril de 1980 chegou a hora do grande comício de encerramento da 4ª Conferência da Reforma Agrária, em Évora, nem um ano tinha passado sobre o assassinato do “Casquinha” e do “Caravela” às mãos da GNR e a mando do Governo de Maria de Lurdes Pintassilgo, apoiado na lei criminosa de Barreto.
Já se tinha entendido que iria ser muito difícil defender a mais bela conquista do 25 de Abril... mas ainda assim, era o que faltava que se perdesse sem luta! Daí o lema da Conferência, “Defender a Reforma Agrária, prosseguir Abril”. Daí a redobrada importância do discurso que encerraria a Conferência e o comício, proferido por Álvaro Cunhal.
Eu tinha acabado de cantar algumas canções, duas delas (pelo menos) saídas do meu mais recente disco, editado no ano anterior. Palmas... sentei-me no grande estrado feito palco, a alguns lugares de distância de Álvaro Cunhal, que estava a escassos minutos de ir discursar para aqueles milhares de pessoas.
De mansinho, levantou-se e veio, sem dar muito nas vistas, sentar-se ao meu lado. Queria saber como estava a correr a “carreira” do meu disco. Gostava de várias das suas canções (não caiu na tentação de me dizer que gostava de todas!). Deu-me algumas razões técnicas para explicar o seu gosto pela minha canção com poema do AryLlanto para Alfonso Sastre y todos” (a ligação da música com a letra, a cavalgada rítmica que eu tinha decidido compor, a forma de a cantar)... mas preferia, decididamente, “Ao alcance das mãos”. Para meu grande prazer enquanto autor, disse-me também porquê. Uma mão a apertar-me o ombro, a dar-me força... e foi para o seu lugar, praticamente no momento em que o seu nome era anunciado.
Um membro da organização, provavelmente daqueles (já me cruzei com tantos!) para quem os cantores, assim que cantam a última nota com que “abrilhantaram” a sessão para que foram convidados, deixam de ter qualquer utilidade ou interesse... não aguentou a dúvida que o “angustiava” e perguntou-me:
- O que é que o Álvaro tanto tinha pra falar contigo em cima do palco?
Uma das minhas razoáveis qualidades (há horas em que é um defeito) foi sempre a capacidade de responder a perguntas deste “género” com respostas por vezes insolentemente anárquicas:
- Estava a dar-lhe umas ideias para o discurso!
Não lhe dei tempo para “chegar lá” por si... tive pena do seu ar algo perdido e optei por explicar-lhe o que se tinha passado realmente.
Afinal, aquela figura carregada de História, de anos de heroísmo, de algum mistério e mais tudo o que sabemos... era, também, apenas mais um homem que gostava de canções!


Adenda: Entretanto, recebi esta prenda do Monginho (sim, o Monginho dos cartoons do Avante)... que sempre tem mais uma corzinha, como ele diz. Faz toda a diferença! O cartaz é da autoria do saudoso João Martins, outro cartonista, mas este de "O Diário".

Publicado em paralelo no "2013 - Centenário de Álvaro Cunhal"

16 comentários:

augusta disse...

Recordar Álvaro Cunhal, o "nosso" Álvaro, saber mais sobre a figura ímpar que ele foi, relembrar aquelas canções é sempre um privilégio, prazer, Cantigueiro!
Obrigada por mais esta partilha!

(por mil razões e mais uma, no Cantigueiro vou votar!)

Antuã disse...


O Homem sempre gostou de arte.

Unknown disse...

Obrigado, pelo apontamento, mais um, a mostrar por que razão o Álvaro era tão singular, tão humano, tão culto e solidário.
Obrigado, ainda, pelo teu blogue frontal, corajoso, comunista e muito bem "desenhado".

Graciete Rietsch disse...

Era um HOMEM.

Um beijo.

Maria disse...

Mais que gostei, amei!
A vida é feita de pequenas estórias assim, umas mais mágicas do que outras.
A propósito, quando é que temos 'o futuro a chegar ao alcance das mãos' em CD?
:-)

Abraço.

Anónimo disse...

A cultura não chegou a todos, ou a importância de gostar dela, da música, e isso é grave, e no que toca a dirigentes sindicais ainda mais o é.

Deve ter sido muito bom ouvir o Camarada Cunhal, e conversar com ele. E saber que ele gostava do seu trabalho.

Obrigado por ter partilhado a história.

Olinda disse...

A simplicidade caracteriza um Grande Homem.Falo dele com muito respeito,mas tambêm com muita ternura.Certa vez,pedi-lhe para ser fotografada ao seu lado,com o pretexto de exemplo para o meu filho ,na altura adolescente e desinteressado da polîtica (hoje ê funcionârio do Partido).Depois da foto,com o seu sorriso caracterîdtico,lembrou os cumprimentos ao jovem.

Um abraco

Luis Filipe Gomes disse...

Imagino que tenhas uma vasta memória de episódios como este.
A particularidade da tua narrativa e a maneira como dela transparece o teu humor mordaz tornaram-na numa preciosidade.
Agradeço a partilha desse teu património.

Anónimo disse...

Eh pá, o Alvaro falou contigo! E tocou-te? Aposto que nunca mais lavaste essa partte do corpo...

Se o sitema político que representa é um baú de ouro que se revelou de lata, o pior é que o culto se parece mais com a Santa da Ladeira.

Enfim que se lixe, as pessoas tão sensivelmente adoradoras terão sempre lugar nas Testemunhas de Geová. Com dízimo! Mas qu tenho eu com isso? Adoradores há muitos.
Boas rezas.

Staline da Moita

samuel disse...

Atrasado mental da Moita:

Oh… coitadito!

Você é mesmo assim… ou isso foi um "descuido" mental? :-) :-)

Pintassilgo disse...


O atrasado mental da Moita é uma besta a precisar de novas ferraduras.

Manuel Ramos disse...

É assim uns adoram outros detestam,é a vida o problema é se todos forem obrigados a gostar ou a repudiar.
A Democracia tem disto.

samuel disse...

Manuel Ramos:

Pois...

Ainda assim, viva a democracia, mas uma figura como a de que aqui se fala, merece opositores que o "detestem" recorrendo a um discurso articulado e não aquele indigente e insolente chorrilho de baboseiras do atrasado mental da Moita.

Acho eu...

Anónimo disse...

Obrigada pela estória! Mas O CAMARADA ÁLVARO CUNHAL é o HOMEM que da lei da morte se libertou!
Vicky

Anónimo disse...

Ó dono da tasca:Eu fiz um comentário à tradicional veneração (não admiração) de uma figura política, a raiar o misticismo. Vossa eminência como é tradição cá da casa respondeu com os pés, o que é o lado para onde eu durmo melhor. Continue lá com a missa. Mas talvez devesse dar mais atenção ao comentário do Manuel Ramos aqui no post. Desça à terra... se quiser, ou se preferir use os paramentos e bata com a cabeça na parede. Há quem diga que acalma os destemperados!
O tal da Moita

samuel disse...

O tal da moita:

Pois...