Por volta dos meus 10 anos de idade tornei-me um miúdo estranho. A conversa da igreja do meu pai começou a entrar-me por um ouvido e a sair pelo outro; na escola primária, embora com a sorte de ter um professor fantástico, aprendia mais de História desviando-me do caminho normal para casa e passando belos pedaços de tarde com um velho sapateiro que contava as façanhas, virtudes e vergonhas de reis, rainhas, soldados e seus derivados, como se as tivesse vivido; na aldeia perto de Aveiro, em Ouca, onde por mim viveria sempre, aprendia sobre agricultura servindo de peso à grade de arar o campo de milho, vindimando, apanhando batatas (estragando muitas...); aprendia sobre o vinho pisando as uvas no lagar; aprendia sobre o pão passando noites em claro a “trabalhar” (dizia eu) na padaria do pai das minhas primas (pão para toda a aldeia e mais algum, tudo amassado à mão, forno de lenha), o grande primo António, um manancial de estórias que só paravam de desfilar de manhã... ou quando eu, depois de três dias sem dormir, “entrava em coma” em cima dos sacos de farinha; aprendia sobre ferro e fogo e tudo o mais que viesse à conversa, com o outro António, este, o senhor António, vizinho da frente da casa da aldeia, ferreiro, ferrador, um artista na forja e a “calçar” de novo juntas de bois, cavalos... e também grande “filosofador”, bastando a minha disponibilidade para accionar a alavanca do enorme fole da forja para ter conquistado a sua simpatia.
Todos suportavam estoicamente as minhas intermináveis perguntas e faziam de conta que admiravam os meus modernos e citadinos conhecimentos académicos, revistos e aumentados ano após ano.
Foi assim que aprendi a ver para lá do postal ilustrado da vida do campo e das profissões em vias de extinção. Ver o lado menos pitoresco, o lado do tremendo esforço, do sofrimento, dos bebés transportados em canastras, à cabeça, por mães operárias a caminho das fábricas de ferragens, pedalando nas suas bicicletas (que espectáculo! - dizia quem passava), do desespero das cheias do campo de Águeda (uma aventura para a garotada) que destruiam todo o milho de um ano de trabalho, do luto eterno dos pescadores da Vagueira e de Ílhavo. Foi assim que fiquei a conhecer o inferno por detrás da coisa mais bela que enfeitava o caminho que fazia para chegar à Costa Nova do Prado, as resplandecentes salinas de Aveiro, onde toneladas de mar eram transformadas em sal, que ia alimentar os porões dos barcos que partiam para a faina do bacalhau... e regressava, meses depois, impregnado nos milhares e milhares de grandes peixes que ficavam ali, esparramados a secar ao sol, em “estendais” intermináveis, Gafanha após Gafanha...
Mas chega de memórias de adolescência! Acho que encontrei a banda sonora perfeita para estas salinas e os seus heróicos “marnotos”. Canta-a a Elis Regina (há dias de sorte!), escreveu-a o Milton Nascimento e é dedicada a todos os homens e mulheres que trabalham o dia inteiro «pra vida de gente levar».
Bom domingo!
Canção do sal
(Milton Nascimento)
Trabalhando o sal é amor é o suor que me sai
Vou viver cantando o dia tão quente que faz
Homem ver criança buscando conchinhas no mar
Trabalho o dia inteiro pra vida de gente levar
Água vira sal lá na salina
Quem diminuiu água do mar
Água enfrenta sol lá na salina
Sol que vai queimando até queimar
Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir
E ao chegar em casa encontrar a família sorrir
Filho vir da escola problema maior é o de estudar
Que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar.
“Canção do sal” – Elis Regina
(Milton Nascimento)
12 comentários:
Ah, então o teu feito de perguntador vem desde pequenino...
:)))
E não é que eu não conhecia esta cantiga? Obrigada!
Abreijos.
Bem!...
é este, o cantigueiro :)
témi
vovómaria
Que belo presente neste domingo chuvoso, em Aveiro.
A sua descrição da infância vivida nesta região é poesia pura!
Bom domingo para si também, Samuel!
Um abraço salgado,
Maria Pereira
Com essa infância/adolescência,tens contigo todos os segredos da vida!. Eu já desconfiava...mas fica confirmado com a escolha da Elis e da "Canção do sal":))
Um abraço amigo
Que lindo texto!
Por recordar a voz belíssima da Elis, obrigada.
A dor da crise bem precisa que no-la suavizem com beleza desta dimensão.
Bela região para viver.
O meu avô era desses, pescador de bacalhau, a minha avó trabalhava na seca e a minha mãe, menina, cresceu uns tempos num moliceiro.
Eu recolhi algum sal dessas salinas.
Abraço!
Gostei do post e como sou fã de Elis... a cereja em cima do bolo...
Vida de gente poder levar,como?se até a vida de bicho nos querem tirar.
É preciso espanascar o mundo.
Um abraço,
mário
Entre as «memórias da adolescência» (magníficas) e a «canção do sal» (magnífica), o meu coração balança, balança...
Um abraço.
Não há dúvida que o adulto que somos reflecte muito da infância que tivemos.
Obrigada pela canção e pela partilha da sua experiência nesta fase da sua vida.
Como também sou natural de um concelho onde há salinas, ofereço-lhe um beijo com sabor a sal.
Bom resto de Domingo.
Milton-Elis... é "dimais"!
Obrigado, amigo
Maravilhoso post, óptima canção da grande Ellis e linda infância!
Parabéns
Um beijo.
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