domingo, 13 de junho de 2010

Álvaro Cunhal (10.11.1913 – 13.6.2005) – "E nunca mais foi apanhado"



Uma chama não se prende

Rodeado de paredes
rodeadas de muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao longo da terrível década de 50

inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950

só então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»

não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o seu Partido a sua acção
e a sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do terror de estado Ponto a ponto
responde com o orgulho do homem livre
e o vigor da inteligência Responde por si
e pelos seus como quem acusa
e ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11 anos seguidos, preso,
14 meses incomunicável,
8 anos em isolamento
E não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara marina

Não cede lê e desenha lê
e estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada pelo vento e pelo silêncio
numa cela
Não cede e escreve
A Questão Agrária
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma tradução do Rei Lear
e escreve
Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu enfim
colectivamente
a 3 de Janeiro de 1960

e nunca mais foi apanhado


Manuel Gusmão

(de «Três Curtos Discursos em Homenagem Póstuma a Álvaro Cunhal»)

Lido no "Cravo de Abril" e "pedido emprestado"


8 comentários:

maia disse...

Olá Samuel.
Neste mundo de serventuários, que bem sabe recordar Álvaro Cunhal, a sua firmeza e a sua denúncia dum governo fascista.
Esta história de João Sabadino, agora trazida a público, um grito de dor e revolta, traz-nos a imagem de uma guerra colonial injusta, assassina e miserável.
è preciso não esquecer e homenagear a dimensão cívica e humana de Álvaro Cunhal, que contra essa guerra lutou e sofreu. Por toda a sua luta, não será esquecido!
Um abraço Samuel, gosto, gosto do teu blogue.

svasconcelos disse...

Um belo tributo a alguém igualmente belo.

Justine disse...

Homenagem sentida, memória presente do homem grande que ele foi!

Graciete Rietsch disse...

"E não falou!". Para mim é uma fala de resistentes que eu ouvi no filme "Roma,Cidade Aberta" e que se aplica perfeitamente aos nossos resistentes e torturados.
Álvaro Cunhal, Militão Ribeiro,Bento Gonçalves e tantos outros.

Um beijo.

Milan Kem-Dera disse...

Álvaro Cunhal - verdadeiramente o único responsável político comunista por quem sempre senti respeito e admiração. Não propriamente por ser comunista, mas porque sabia perfeitamente a razão porque era comunista.
Político lúcido e seriamente convicto dos seus ideais, perfeitamente coerente com a sua linha de pensamento, sempre o ouvi com toda a atenção e respeito.
Fortemente carismático, poder-se-ia não estar de acordo com ele em muitas coisas, pode não ter sido admirado por todos (que não foi) mas teve sempre, isso sim, o respeito de todos os seus opositores, características muito especiais que são próprias de um grande político e que não mais se encontraram em quaisquer dos seus seguidores.

Anónimo disse...

um Homem Maior!

vovómaria

Fernando Samuel disse...

Excelente poema do Manuel Gusmão.

Um abraço.

Maria disse...

Até na fuga este Homem foi Colectivo!!!
Belo poema!

Abreijos.