Nos idos de 1910, a Marinha Brasileira gostava de ter ao seu serviço cidadãos negros. Não para mostrar qualquer espécie de “abertura”, mas antes para poder lucrar com o seu trabalho, feito em moldes de quase escravatura.
Para deixar bem claro o apreço em que tinham os seus mais tisnados “camaradas de armas”, os garbosos dirigentes militares, ao arrepio do resto da sociedade, que já abolira a escravatura, insistiam na prática dos “castigos corporais”, um eufemismo para as chicotadas, que podiam chegar às centenas, provocando as cantadas “rubras cascatas”, uma imagem poética bela, mas que não é mais do que o sangue que escorria pelas costas dos jovens marinheiros.
Exactamente em Novembro de 1910, estes marinheiros iniciaram uma revolta militar que, embora tendo como motivo inicial os soldos e alimentação miseráveis e, claro, os castigos corporais, depressa ganhou muito maior dimensão, abalando o poder da época. Ficou conhecida como “A revolta da chibata” e apesar de ter obtido alguns triunfos, originou muita e brutal repressão, acompanhada das mortes “dos de sempre”.
Na História desta luta pela dignidade humana, destacou-se a figura de João Cândido, um jovem timoneiro, que ficou conhecido como “Almirante Negro”. Depois de muita prisão e pancada, de assistir à morte de muitos dos seus camaradas, morte provocada, entenda-se, ser internado e dado como louco, foi finalmente expulso da Marinha e acabou os seus dias na pobreza, vendendo peixe, por nunca mais ter conseguido encontrar quem desse emprego a alguém com o seu historial e a sua cor. Nunca viu o seu nome, nem os dos seus companheiros de luta, reabilitado perante a sociedade, até morrer, em 1969, com 89 anos.
Essa reabilitação e a reposição da justiça (para todos), chegaria apenas em 2003, aprovada pelo Congresso Brasileiro.
Antes, nos anos 70, ainda sob a ditadura, os autores brasileiros Aldir Blanc (letra) e João Bosco (música), pegaram nesta história e fizeram uma extraordinária canção, “Mestre-Sala dos Mares”, que depois de muito “p’ra lá e p’ra cá” com a censura (tal como o que se passava em Portugal), lá conseguiram uma versão autorizada e com alterações “cirúrgicas”, que muitos até hoje já gravaram e cantaram ao vivo, tendo à cabeça (evidentemente) a grande Elis Regina.
Para apreciarem as tais pequenas alterações impostas pela censura à letra original, basta clicarem sobre a imagem que se segue, onde as duas versões estão lado a lado.
A originalidade deste vídeo que vos proponho, não está na genialidade da Elis como cantora, mas sim no “descaramento” que teve, de ainda no tempo da ditadura no Brasil, ir cantar exactamente a versão proibida... ao Chile, igualmente sob uma ditadura, no caso, a do assassino Pinochet.
E é esta, amigas e amigos, a história talvez pouco conhecida, de uma grande canção que quase todos já ouvimos mais que uma vez. Disfrutem!
“Mestre-Sala dos Mares” – Elis Regina
(Aldir Blanc/João Bosco)
11 comentários:
Já ouvi a canção inúmeras vezes mas não conhecia a "história". Só Ellis!
Aqui fica outra história que só soube agorinha mesmo pela RR:
A empresa que produz o computador Magalhães é arguida num processo de fraude e fuga ao IVA que terá lesado o Estado, no total, em mais de cinco milhões de euros.
Além da JP Sá Couto, é também arguido um dos seus administradores, João Paulo Sá Couto. O administrador e a empresa são acusados da prática dos crimes de associação criminosa e de fraude fiscal, juntamente com outros 39 arguidos.
Porreiro pá!
Bom trabalho Samuel
Não conhecia esta estória da cantiga da Elis...
Tão ridícula, a censura...
Obrigada pelo excelente post!
Abreijos
Muito obrigada Samuel! As coisas que nos ensinas... Deixo um abraço de amizade...
Abreijos,
A canção tem agora um significado mais fundo. A Elis, grande mulher em todos os aspectos!
Obrigada
Pois conhecia a música, não a história.
Obrigado.
A Ellis era fenomenal, grande cantora, pena ter desaparecido tão cedo.
Deixou cá a Maria Rita, não é má, também gosto, mas Ellis era especial.
beijo
Por que será que os censores são tão iguais, seja qual for o seu espaço e o seu tempo de intervenção?
A canção, com a história e o «atrevimento» da Elis, é ainda mais bonita.
Um abraço.
É tão bom ouver a Elis e, ao mesmo tempo, custa tanto saber aquela espantosa força de vida apagada, assim, prematuramente, quando tinha tanto para nos dar...
Palavras mais para quê?
...
Incrível.
Excepcionais!
O poste, a Elis, a canção, tudo!
Conhecia a canção mas não a história.
Obrigada pela partilha.
Abreijinhos
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