segunda-feira, 29 de março de 2010

Enxugarei teu rosto com cuidado. Tu farás o meu canto.



O carácter tem caminhos insondáveis! Aqueles que o têm, tantas vezes completamente despojados de bens materiais, estão disposto a pagar preços altíssimos para o manterem. Aqueles que o não têm, tantas vezes podres de ricos, não possuem dinheiro que chegue para o comprar.

Foi o que pensei ao tropeçar mais uma vez nesta grande fotografia, conseguida pela fotógrafa Dorothea Lange, em 1936, nos Estados Unidos da América. A imagem faz parte de um trabalho documental sobre a Grande Depressão, encomendado a um grupo de repórteres.

A mulher aqui retratada, uma trabalhadora que com o marido e os filhos, tal como centenas e centenas de outras famílias, percorria os campos em busca do que quer que pudesse encontrar como trabalho, tornou-se “famosa” depois da publicação desta imagem. Ficou conhecida como a “Mãe Migrante”. Chamava-se Florence Owens Thompson. Quando foi fotografada tinha já sete filhos... e 32 anos de idade!

Em vez de comentários prefiro dedicar-lhe, tantos anos passados, este impressionante e belíssimo poema de Mário Dionísio, que fui tomar emprestado ao “Cravo de Abril”.


Poemas do cão danado (4)



Deixa lá, companheira!
Que havemos de fazer?
Fecharam-nos a porta e quase nos cuspiram.
Pisaram-te e, a mim, vergastaram-me as mãos.
Deixa lá! Deixa lá! Eu beijarei teus pés
e tu farás sarar as minhas mãos.
Para lá da última casa ainda há terra
e céu e água e luz...

Ainda há vida para lá.

Deixemos para eles o som vazio das gargalhadas
e a luxúria do oiro.
Ainda há vida para lá.
O nosso horizonte é mais vasto em cada instante.
A nossa voz mais rica em cada instante.
O nosso querer mais certo em cada instante.
Ainda há vida para lá.
Sigamos nossa rota, companheira.
Enxugarei teu rosto com cuidado.
Tu farás o meu canto.
E para além das barreiras do tempo
milhões de homens nos esperam com os braços abertos,
que desde a primeira hora serão braços de irmãos.

Mário Dionísio (“O Homem Sozinho na Beira do Cais”)

14 comentários:

Daniel disse...

Samuel, esta fotografia poderia servir perfeitamente para capa de "As Vinhas da Ira". Se me permites, transcrevo um parágrafo do prefácio que escrevi para um livro de um dos meus heróis, o Francisco Cora Fagundes, um "rapaz" da minha idade, escritor e professor na Universidade de Massachusetts.
"Francisco andou a sua “Route 66”, a “Estrada Mãe” dos deserdados de John Steinbeck, da Agualva à Califórnia. A terra onde jorravam o leite e o fel. Para os pobres, as laranjas tinham um sabor amargo e era como se as herdades de pó existissem ainda e se prolongassem muito para lá dos estados do Midwest. E o pior fel foi-lhe servido por gente que falava a mesma língua e que havia sido tão pobre como ele. Tristemente, quando os pobres enriquecem são, muitas vezes, mais avarentos que os ricos de nascença."

Maria disse...

Excelente post!
Comovente, por tudo...

Abreijos.

salvoconduto disse...

A fazer lembrar tantas outras que ainda hoje seria possível fotografar por este mundo fora, se tivessemos o engenho de Florence Owens Thompson.

Já quanto ao carácter é coisa que cada vez mais vai rareando.

Boa semana.

Anónimo disse...

Há um provérbio que diz: "não sirvas a quem serviu nem peças a quem pediu".
A solidariedade é um sentimento que se constrói a pulso porque a vida, muitas vezes, é tão difícil que torna algumas pessoas egoistas, duras e até cruéis.

Campaniça

svasconcelos disse...

Tocante, este post!
A fotografia é lindíssima e o poema, esse, não podia ser mais consonate com a beleza da foto. Um bonito tributo a todos os que lutaram e ainda lutam pela sua dignidade.
beijos,

Justine disse...

Muito belo e dolorido, Samuel

Anónimo disse...

"tu envois dix francs pour les enfants du Ganges
parce-que tu as vu des fotos qui derange!
Tu envois dix francs pour les enfants d'ailleurs
Parce-que tu as vu des fotos qui font peur!
Mais celle que tu croise en bas de chez toi?" (...) Francis Cabrel
abraço do vale

Mar Arável disse...

Pelo sonho é que vamos

Abraço amigo

CS disse...

Uma lágrima sentida!

Fernando Samuel disse...

Belo. Belíssimo.

Um abraço.

anamar disse...

Simbiose perfeita...
.))
Abreijo

Graciete Rietsch disse...

"Para um novo alvorecer junta-te a nós companheira". Assim é que tem que ser. Juntos venceremos.
Maravilhosa fotografia que também me fez lembrar as "Vinhas da Ira"

Um beijo.

Daniel disse...

Uma correcção de pormenor. Digitei um "r" em vez de um "t" no nome do meu amigo Francisco Cota Fagundes.
Eles estão mesmo ao pé um do outro...

samuel disse...

Daniel:
Se o Steinbeck lhe tem deitado a unha... ☺

Maria:
Deixa um amargo...

Salvoconduto:
A Florence foi a fotografada... mas é isso!

Campaniça:
Acabam por endurecer nos “sítios” errados...

Smvasconcelos:
E que são aos milhões.

Justine:
Talvez mais dolorido...

Duarte:
É isso...
E obrigado por me lembrares o Cabrel!

Mar Arável:
E é por aí o caminho.

CS:
Abraço.

Fernando Samuel:
Abraço... e obrigado pelo poema!

Anamar:
Beijo.

Graciete Rietsch:
Foi por isto que nasceu essa canção...


Abraço colectivo.